CINEMA EM CASA COM MANGA ROSA

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15/12/2012 por quidproco

Ir a um supermercado hoje em dia é o modelo de sobrevivência pós-moderna e o ápice da sistematização do cotidiano, logo requer toda uma preparação caso o sujeito não queira se perder no processo. Primeiro: garantia de lista, perceber o que falta em casa e quais as novas tralhas que se pretende adquirir para ter o que jogar fora na próxima super faxina. Segundo: decidir se leva a sua própria super sacola e ajuda o meio ambiente economizando nas duzentas sacolas plásticas que colocarão suas compras ou se garante essas duzentas sacolas para reaproveitá-las ao organizar o lixo da casa. Terceiro: decidir a ordem de preenchimento do carrinho, pois se começar pelas frutas, por exemplo, elas ficarão no fundo do carrinho e chegando em casa o suco já estará pronto. Tudo bem que isso seria muito prático, mas me parece estranho misturar polpa de tomate com abacate, mesmo em tempos em que tudo se mistura, haja vista os sucos de abacaxi com hortelã, cenoura com laranja, banana com mamão, e o famoso mastruz com leite, que por sinal só em escrever já me dá enjoo.

Isso porque entre as muitas heranças obtidas do lado materno trago comigo o jeito peculiar de persuasão. Quando criança minha mãe, sem muita grana pra comprar remédio, inventava tudo que era gororoba, digo chás e Cia para curar os filhos. Mastruz com leite era umas das gororobas clássicas. Neguinho sonhava em ficar gripado, e lá vinha ela com o quê? Mastruz com leite. Neguinho ensaiava ter anemia, e lá vinha o quê? Mastruz com leite. Neguinho torcia o pé e lá vinha ela com o super mastruz com leite. Meu inconsciente me ajudou muito, fiquei doente raríssimas vezes, nada de anemia, nada de pé torcido apesar das quedas de patins e do esporte sempre companheiro, mas nas raras vezes que a gripe resolveu me beijar, lá vinha minha mãe com seu instrumento persuasivo mor, algumas doces palavras acompanhadas por um cinto, um chinelo ou uma ingá. É isso mesmo, nem uma ingá escapou de mamãe e nem minhas costas escaparam dela. Mas, de volta às palavras, “toma TUDO que tu fica boa rapidinho”. Eu tinha lido em algum lugar que tapando o nariz não se sentia o gosto, e sempre fazia isso, mas o danado do matruz com leite insistia em voltar. De modo que até hoje mesmo quando não é pra ele entrar, o que está dentro de mim, ao sentir o cheiro do maldito mastruz com leite, insiste em sair.

Passando pelas frutas, verduras e afins e deixando-as por último, por motivos já explicados, no supermercado a melhor sequência possivelmente é: arroz, feijão, farinha, açúcar, ervilha e milho, Nescau, capuccino, leite em pó e líquido, azeitonas, pepino em conserva, azeite, champignon, extrato de tomate, molhos prontos para massa, biscoito recheado, biscoito água e sal, crunch, macarrão parafuso, macarrão espaguete, macarrão ninho, creme de leite, danoninho, corpus, requeijão, carne moída, patinho, coxa e sobrecoxa sem pele de preferência, salsichas, empanados, pão de forma, ovos, sabão líquido, detergente, desinfetante, papel higiênico, papel toalha, saco de lixo. Detalhe: os frios e os produtos de limpeza devem estar separados do restante da compra. E finalmente, as verduras e as frutas.

Além de ir ao supermercado outra característica típica dos sobreviventes pós-modernos é a preocupação aparente com o que come. No meio dessa ligeira preocupação para cada porcaria ingerida tenta-se ao máximo compensar com uma verdura ou fruta, obviamente ignorando o processo de plantio e colheita da verdura, além do mais pra quê pensar em agrotóxicos quando se precisa enganar a consciência antes de satisfazer a barriga?

E assim, quase que é preciso um novo carrinho pra colocar tanta coisa verde e “saudável”. Alface, cenoura, beterraba, pepino, salsa, cheiro-verde, cebola, tomate, pimentão, etc., banana, abacate, abacaxi, melancia, mamão e quem sabe manga.

184835_438466489549949_631740367_nManga lembra cinema em casa, graças à adolescência querida e à vida sem lanches e pipocas que, por questões econômicas, tínhamos eu e meus irmãos. A propósito, estando entre meninos, desde sempre, subir nos pés de manga e garantir o lanche enquanto via os clássicos do cinema em casa era fichinha. Assim, quando era lá pelas 14h era sempre a mesma coisa, meia bacia de manga espada e meia bacia de manga rosa. Às 14:30h mais ou menos lá estava na TV “A Odisséia”, e nós na frente da TV com a grande bacia de manga…era o filme inteiro entre sorrisos, brigas por uma manga que parecia melhor, palpites sobre o que iria acontecer no final do filme nas raras vezes em que não se tratava de reprise, o irmão mais novo puto de raiva porque meus palpites sempre faziam sentido ou era exatamente o que acontecia. Eu tinha virado a oficial diretora dos filmes pra ele e não entendo porque ele odiava isso. A última manga rosa era sempre a responsável pela maior intriga da tarde e coincidia com o final do filme, independente de quem ganhasse a batalha final na nossa odisseia por barriga cheia garantida pelo resto do dia o que ficava era sempre a certeza de que no dia seguinte seria tudo igual, inclusive a falta de pipocas e a fartura nos sorrisos.

No supermercado não tem manga rosa. A manga que tem dificilmente é boa, não sei se porque não é rosa ou se porque não fica no lugar da pipoca, ou mesmo se porque não tenho mais 12 anos de idade. Mas, fora as mangas não serem mais facilmente conseguidas com uma simples subida em árvores duvido que o que se comia naquela época tinha qualidade duvidosa e duvido mais ainda da possibilidade dos meninos e meninas pós-modernas sorrirem tanto sem pipoca ou ter um matruz com leite medicinal pra botar fora.

 

Mari Rodrigues

2 pensamentos sobre “CINEMA EM CASA COM MANGA ROSA

  1. Waldeilson Paixão disse:

    Durante minha infância até parte da adolescência, vivi a experiência de carregar as sacolas das compras de supermercados (Lusitana na época). Não tinha querer: era parte das tarefas obrigatórias. Recentemente também passei à tarefa de realizar este “modelo pós-moderno”. Confesso que achei muito prazeroso e acredito que continuarei gostando dessa prática. Mas nas gôndolas ainda olho pro arroz (que eu adoro) e penso: tem que ser um limpinho, sem grãos estragados. Isso porquê catar arroz, aliás uma saca inteira, era um dos “enes” castigos que meu pai nos aplicava. Assim, o arroz “sujo” virou trauma…
    O fato é que estamos caminhando para um consumo cada vez mais artificial. Talvez chegaremos a consumir cápsulas nutritivas – suspeito que já exista – ou produtos de uso que aparecem depois de acionar algum dispositivo bobo. Isso preocupa. Por essas e outras, para poupar nossos organismos, produzimos um pouco aqui em casa (rúcula, urucum, manjericão, limãozinho, etc) e somamos ao que meu pai produz no interior, como macaxeira (e a farinha também), frutas em geral (MANGAS inclusa), verduras e legumes, e até terra-preta. Tudo sai mais saboroso e certamente mais nutritivo. Duvido, Mari, que algum menino(a) pós-moderno sinta falta de alguma rúcula, a não ser que seja de “plástico”.

  2. luciana helena disse:

    lembrei de toda minha infância, uma saudade sem fim! adoro ler esses textos, viajo de verdade!

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