Coisas de GENTE Grande

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07/12/2012 por quidproco

O primeiro dia de aula de um professor de nível superior minimamente comprometido com o seu trabalho, qualquer que seja a área dele, é sempre a mesma coisa. Ele senta, se apresenta – alguns cospem todos os seus títulos, outros falam apenas o básico – explica o que vem a ser a disciplina que está sob sua responsabilidade, explica como vai ser a avaliação e em seguida vem a velha, boa, antiga e chata pergunta. Aquela que todos os alunos torcem o nariz quando sabe que não vai ter jeito, que aquele maldito professor ou professora vai fazer de um tudo pra que o aluno ou aluna responda, “porque você resolveu fazer esse curso?”.

Estando no papel chato da pergunta, sempre faço algumas piadas pra minimizar a dor de fazer os alunos responderem a essa questão, até porque ainda não estou certa sobre o exato motivo pelo qual insisto nela. Oras penso que a pergunta fará o sujeito refletir sobre o que diabos realmente quer da vida e sendo a minha disciplina no início da grade curricular forneço aos alunos um tempo extra pra desistir, ao que tudo indica desistir nos últimos períodos é bem mais difícil. Oras penso que assim consigo preencher o vazio de uma primeira aula que não posso iniciar o conteúdo de fato, porque ainda tem alunos que faltaram e eu teria o trabalho de repetir todo o assunto.

De todo modo, curta, grossa, zangada ou tranquila, a resposta sempre vem e já ouvi de tudo, desde “eu nasci pra isso”, “é da minha natureza fazer isso”, “meus pais já trabalham nessa área”, “eu já trabalho nessa área”, “meu pai tem uma empresa, então eu aproveitei pra melhorar o negócio da família”, “na fila da inscrição fiz um sorteio e esse curso ganhou”, “por exclusão dos outros cursos me restou esse”, “eu tinha que fazer algum curso senão minha mãe não me pagaria mais mesada, então escolhi o que me pareceu mais fácil” e a mais espantosa de todas “antes de escolher o curso eu queria ser gente, depois que me tornei gente resolvi fazer isso”.

A princípio não entendi nada dessa resposta, cheguei a pensar que era piada e fui logo tratando de pensar em outra piada pra não ficar por baixo do aluno, afinal sou a professora. Ficar por baixo do aluno é uma questão moralmente complicada em tudo que é sentido que se possa imaginar. Então, querendo ficar bem com a situação, e é melhor não pensar se em cima ou embaixo, resolvi devolver a frase de efeito, “sim, e o que era preciso mesmo pra você virar gente? Conseguir amarrar os cadarços do tênis ou ter um cartão de crédito?”.

É que no mundo moderno tem dois marcos na vida de qualquer pessoa: ser capaz de amarrar os tênis e poder sair por aí correndo menos riscos de tropeçar nos próprios pés e ter um cartão que te possibilite dizer “no crédito, por favor” quando precisa comer, beber ou dormir e lhe faltar o dinheiro em mãos e uma conta corrente com números na cor azul.

Mas, voltando ao aluno que queria ser gente, a história era que ele quando criança vivia em uma tribo indígena e segundo o mesmo o sonho da maioria dos meninos e meninas da tribo, pelo menos da que ele fazia parte, que fica no norte do Maranhão, era conseguir morar em uma cidade grande, fato que para os mesmos representa “virar gente”.

E como toda “gente”, em seguida precisam trabalhar (capitalísticamente falando), procurar uma formação acadêmica, formar uma família (independente de como seja ela) e juntar seus bens.

Pois bem, o querer ser “gente” do meu novo aluno ex-morador de uma aldeia me fez pensar sobre o que quando criança eu queria ser. Voltei no tempo e lembrei de uma das casas malucas que moramos e do sufoco que uma delas em especial nos rendia quando chovia.

Na época, a residência da minha família era a própria “casa muito engraçada” da música do Vinícius de Morais, e do mesmo jeito dessa canção teto não tinha, pelo menos não um que fosse capaz de conter a chuva. Eu lembro que a minha mãe colocava plásticos pretos, comprados a metro por cima das telhas, que por sua vez eram super quebradas e quando chovia com vento lá ia embora o suado trocado da minha mãe convertidos em metros de plásticos.

Mas, nessa casa que “não tinha teto” tinha uma área na frente que nos possibilitava brincar e que por isso era atrativo para as crianças da vizinhança, como o dever de casa assombrava a maioria dos colegas todos os dias, nós aproveitávamos pra fazer de uma das brincadeira a hora do dever de casa. E eu, que sempre tive um tino pra colocar a galera pra ler alguma coisa, aproveitava também essa oportunidade.

Eu adorava ler, aos 9 anos os contos da carochinha e as mil e uma noites tinham sido todos devorados e não sei se por uma vontade de ter alguém que pudesse compartilhar aquilo tudo comigo ou se porque adorava que me acompanhassem em tudo que eu fazia, eu queria que todo mundo lesse tudo o  que eu tinha lido.

Então, já que eu estava cheia de prática porque tinha alfabetizado meu irmão, fazia das tardes em frente à casa maluca uma sala de aula de brincadeira. E lá estava eu, com um quadro preto improvisado pela minha mãe para que eu estudasse, uma mesa, uns banquinhos, lápis, caderno, borracha e livros. E lá estavam, meu irmão mais novo e nossos coleguinhas da vizinhança, todos certos de que eram os alunos e de que eu era a professora. Todos com os seus deveres de casa prontos para serem respondidos com a ajuda da professora de reforço e todos me chamando de “tia”, afinal, era assim que os alunos chamavam as professoras.

LB77074thmTerminados os deveres, éramos todos iguais novamente, correr na rua, empinar pipa, andar de bicicleta, brincar de pega-pega… Eu voltava a ser a “Té” para o meu irmão, e a coleguinha de vizinhança do restante. E depois de muita correria e sorrisos a volta pra casa era anunciada quando o sol já tinha de nós se despedido e as nossas mães já não demorariam a chegar do trabalho, as costas mais calejadas já tinham aprendido que se tem uma coisa que as deixariam extremamente irritadas seria encontrar os filhos com terra até no olho de tanto sujo. Então, após a brincadeira de escola, a pipa e tudo o mais, correr pro banho e esperar a mãe em casa, as costas agradeciam.

No dia seguinte tudo igual. A rotina permanecia pelo resto da semana, menos sábado e o domingo é claro, porque a escola fecha esses dias, logo, poderíamos aproveitar pra sermos apenas gente amiga que brinca junto. Mas, uma coisa era certa, todas aquelas crianças já sabiam que eram gente. Gente pequena, gente que brinca, que sorri e que se suja.

Eu era o tipo de gente que sem querer já tinha escolhido o que ia ser, só depois percebi que “ser” é muito complicado e que o tempo é curto, então mal dá tempo de decidirmos o que “fazer”. O que fazer eu escolhi aos 9 anos e agora com “mais de 20 anos blues” como diz a música cantada pela Elis Regina ainda estou pensando no que sou. Agora graças ao meu aluno eu sei que, sob o ângulo dele, eu sou gente, eu moro em cidade grande, eu estudei, eu trabalho, eu junto alguns bens, eu sei amarrar meus sapatos e tenho até cartão de crédito. Meu aluno precisou sair de onde nasceu, entrar em um processo de socialização e mudar tudo drasticamente pra poder me mostrar com orgulho uma carteira de identidade e eu hoje adoraria poder correr, sorrir e me sujar um pouco mais, mas aí é quase certo de que iriam dizer que isso não é coisa de gente, pelo menos não de gente grande que vive na cidade, trabalha…

 

Mari Rodrigues

3 pensamentos sobre “Coisas de GENTE Grande

  1. suzanapohia disse:

    Adorei Mari!

    Deu uma vontade de conversar ao vivo contigo sobre os escritos =)

  2. Roberta disse:

    #pulei o “aprender a amarrar o cadarço”….
    =(

    Nao tem outro marco? Opcional?

    Adorei o txt da Mari. Como sempre: boas recordaçoes e reflexoes!

    Xoxo

  3. Thay Vieira disse:

    E nós que nascemos “gente” (aos olhos da tribo do teu aluno), nos perguntamos e quando seremos “ser”? Quando aprenderemos que o outro não é ruim? Ele é apenas diferente. Talvez fossem eles mais gente que qualquer “gente” nascida numa “cidade grande”.
    Meu processo de ser gente se deu quando eu conseguir ler, um processo doloroso, complicado, até porque foi solitário. No instante em que me dei conta que podia, e conseguia, ler o que eu quisesse e que tudo o que lia se multiplicava por mil (mil ensinamentos, mil conhecimentos, mil ideias, mil re-ideias…) e podia compartilhar com o mundo, ai sim, me senti SER-GENTE! Bem assim, com letras maiúsculas!
    PARABÉNS MARI! Texto perfeito, fez voltar no tempo e trouxe à tona lembranças, não iguais à essas, mas de num contexto parecido!

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